Resenha | Até que tenhamos rostos – C. S. Lewis
Publicado pela primeira vez em 1956, com o título original de Till We Have Faces, é considerada a obra mais completa de Lewis e também a sua preferida, uma releitura de um conto grego “Cupido e Psique”, recontado sob o ponto de vista de Orual, a irmã mais velha de Psique. Lewis espera que o leitor conheça o mito original, na obra “Metamorfose” escrito por Lucius Apuleio, antes de iniciar a leitura de “Até que tenhamos rostos”. E adverte que utilizou Apuleio como fonte, e não como influência. Nesta edição da Editora Thomas Nelson Brasil, tem a introdução deste mito, que deixarei após a resenha.
Agora sou velha e nada tenho a Temer em relação à fúria dos deuses. não tenho marido, nem filhos, tão pouco um amigo a quem eles possam usar para me machucar. Meu corpo, este cadáver magro que ainda precisa ser lavado, alimentado e coberto com muitas mudas de roupas dia após dia, este eles podem matar assim que quiserem. (p. 1)
Orual é a filha rejeitada do tirano rei de Glome, pai de mais duas meninas: a rebelde Redival e a linda Psique, fruto do segundo casamento do rei. Orual sofre muitos abusos psicológicos, ela é considerada uma garota feia e desinteressante, além de ser constantemente humilhada e maltratada pelo pai. Então, repleta de dúvidas ela anseia por encontrar respostas para sua melancólica vida, uma trajetória longa e cheia de farpas. Assim, ela decide escrever um livro narrando sua história, e nesse processo ela passa a refletir sobre suas próprias atitudes. E esse é o grande ponto da obra de Lewis, as reações de Orual perante todas as barreiras psicológicas sofridas por ela.
O livro tem início e fim fazendo uma correlação com as falas de Jó, Antigo Testamento. No começo Orual faz queixas e questionamentos sobre sua condição de vida, assim como Jó o fez a Deus: “Não posso ficar calado. Estou aflito, tenho de falar, preciso me queixar, pois o meu coração está cheio de amargura” (Jó 7:11). Já Orual diz: “[...] Vou acusar os deuses; especialmente o deus que vive na Montanha Cinzenta. Em outras palavras, vou contar tudo o que ele fez a mim desde o começo, como se estivesse apresentando minha queixa perante um juiz. Mas não há juízes entre deuses e homens, e o deus da Montanha não me responderá. Os terrores e os pragas não são resposta.” (p.1). Porém, Orual encontra a resposta, da mesma forma que Jó quando ele diz: “É que falei de coisas que eu não compreendia, coisas que eram maravilhosas demais para mim e que eu não podia entender” (Jó:42-3). Orual usa expressões parecidas: “Sei agora, Senhor, porque não me deu nenhuma resposta. Você é a própria resposta. Diante do seu rosto as perguntas morrem. Que outras respostas seria suficiente?”.
O amor é jovem demais para reconhecer o que é a consciência.
Não deixe que a tristeza feche seus ouvidos e endureça o seu coração... ( p.84)
O título do livro “Até que tenhamos rostos” significa a face oculta escondida por trás do verdadeiro eu. Uma jornada de autoconhecimento na busca pela ressignificação do ser e redenção da alma, para revelar a luz ofuscada pelas trevas interiores que deixa o ser humano sem um rosto identificável, ou seja, sem autenticidade. Esse é um processo árduo que só é possível com a ajuda de Deus.
“Até que tenhamos rostos” é um livro, intrigante, que aborda temas como amor, obsessão, inveja, ciúme, arrependimento e luto. Uma obra complexa de ser lida, exige concentração, porém é fluída, pois a ambientação minuciosamente descrita, instiga o imaginário. Não contém a mesma narrativa literária de “Crônicas de Nárnia”, possui uma simbologia com significados mais profundos de serem analisados e um contexto que requer muita concentração. Nem sempre será possível compreender completamente todas as incógnitas que a obra possui e chegar a uma definição, pois, são várias possibilidades de interpretações pelo leitor. No entanto, é perceptível a mensagem de redenção transmitida pela obra.
A coisa mais doce em toda minha vida foi o anseio por alcançar a Montanha, por encontrar o lugar de onde vem toda beleza...
[...]
O anseio pelo lar? Pois, de fato, agora tenho a sensação de não estar indo embora, mas de estar voltando. [...] Eu irei ao encontro do meu amado. (p. 84)
Por fim, concluo que é um excelente livro, mesmo não fazendo menção alguma sobre o cristianismo, essa alegoria nos remete a uma intensa reflexão ao sacrifício de Jesus. Uma leitura recomendadíssima!
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- O grande divórcio
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Sinopse: Intrigante, comovente, revelador. Esses são alguns dos adje-tivos que podem descrever Até que tenhamos rostos, livro no qual C. S. Lewis, com seu brilhantismo característico, realiza uma releitura do famoso mito de Cupido – deus imortal – e Psique – humana que, de tão bela, atrai o desejo e a inveja dos deuses. O autor localiza sua narrativa no reino fictício de Glome e subverte a perspectiva tradicional ao relatar a história a partir do ponto de vista de Orual, a rejeitada irmã de Psique.
Escrito perto do fim de sua carreira literária, o livro é a demonstração da maestria de Lewis na arte da composição, contendo uma intrincada narrativa que versa sobre a inveja, a culpa e o luto. Traço comum em suas obras, o autor não se restringe a utilizar as palavras como espelho, em que o leitor reconhece a natureza humana e sua falibilidade, mas, transcendendo, aponta para algo além de nós mesmos, através de profundas reflexões acerca do papel que o divino exerce em nossas vidas. Esta é, para muitos, a melhor e mais madura obra de um dos gênios da literatura.
Título: Até que tenhamos rostos | Autor: C. S. Lewis | Editora: Thomas Nelson Brasil (1ª Ed. 2021) | Gênero: Ficção, Romance | Páginas: 320 páginas | Classificação: ⭐⭐⭐⭐⭐
Introdução do livro “Metamorfose - Apuleio” (Nota do livro Até que tenhamos rostos, p. 313-316)
A história de “Cupido e Psique” foi contada pela primeira vez em um dos poucos romances latinos que sobreviveram ao tempo, Metamorfoses (também às vezes chamado de O Asno de Ouro), de Lucius Apuleio, nascido por volta de 125 d.C. Os detalhes mais importantes do romance são os seguintes:
Um rei e uma rainha tiveram três filhas e a mais jovem era tão bonita que os homens a louvavam como a uma deusa, como se ela fosse a verdadeira Vénus. Por causa disso, Psique - como era chamada a irmã mais nova - não era cortejada por ninguém; os homens reverenciavam demais a sua suposta deidade, por isso não a desejavam para si. Quando o pai dela consultou o oráculo de Apoio querendo informações sobre o casamento da filha, foi-lhe dada a seguinte resposta: “Não tenha esperanças de ter um humano como genro. Você deve levá-la para que fique exposta em uma montanha, a fim de que se torne presa de um dragão”. E o pai obedeceu.
Entretanto, Vénus, com ciúme da beleza de Psique, já havia articulado uma punição diferente para ela. Tinha pedido ao seu filho, Cupido, para que a atormentasse com uma paixão irresistível até mesmo para o mais simples dos homens. Cupido fez isso, mas, ao ver Psique, apaixonou-se por ela. Tão logo ela foi deixada na montanha, o Vento Oeste (Zéfiro) decidiu ajudá-la, carregando-a até um lugar secreto, onde ele havia construído um majestoso palácio. A noite, ele a visitava e desfrutava do seu amor, mas a proibia de ver o seu rosto. Em pouco tempo, ela implorou-lhe para que pudesse receber a visita de suas duas irmãs. Com relutância, o deus acabou consentindo e fez com que elas flutuassem até o palácio. Lá, foram majestosamente recebidas e demonstraram enorme satisfação em relação a todo o esplendor que viram. Internamente, porém, estavam se corroendo de inveja, porque os seus maridos não eram deuses e as suas casas não eram elegantes como a da irmã.
Elas, então, conspiraram para destruir a felicidade dela. Na visita seguinte, elas a convenceram de que seu misterioso marido deveria ser, na verdade, uma serpente monstruosa. “Você deve levar ao seu noite noite", disseram, "um lampião coberto com um manto e uma faca afiada. Quando ele dormir, descubra o lampião - veja o horror que está deitado em sua cama - e mate-o a facadas.” Tudo isso a crédulo Psique prometeu fazer isso.
Quando ela acendeu o lampião, viu o deus dormindo e ficou olhando intensamente para ele, tomada por um amor insaciável, até que uma gota de óleo quente pingou do lampião e caiu no ombro dele, acordando-o. Levantando-se, ele estendeu as suas asas, repreendeu-a e desapareceu de sua vista.
As duas irmãs não conseguiram se divertir por muito tempo com a maldade que fizeram, pois Cupido notou o que aconteceu e as levou à morte. Enquanto isso, Psique, desolada e infeliz, caminhou para bem longe e tentou se afogar no primeiro rio que encontrou em seu caminho, mas o deus Pã frustrou a tentativa dela e a advertiu de que nunca mais voltasse a repetir a tentativa. Depois de passar por muitos tormentos, ela caiu nas mãos de sua pior inimiga, Vénus, que a tomou como escrava, a maltratou e lhe atribuiu tarefas que pareciam impossíveis de serem cumpridas. A primeira delas consistia em separar uma quantidade enorme de sementes de vários cereais, que estavam todas misturadas, porém ela cumpriu a tarefa com a ajuda de algumas formigas muito prestativas. Na sequência, ela teria de pegar amostras de lã dourada de alguns carneiros do sol, considerados animais terríveis. Então, um junco verde do leito do rio aconselhou-a a esperar a noite chegar e, quando os carneiros fossem dormir, apanhar os fios de lã dourada que haviam ficado enroscados nos galhos das amoreiras nas quais os carneiros haviam se encostado durante o dia. Depois dessa tarefa, ela tinha de encher uma jarra de água na fonte de Styx, que só podia ser alcançada escalando-se montanhas dificílimas, mas uma águia veio em seu auxílio, tomou a jarra das mãos dela e retornou com o recipiente cheio de água. Finalmente, teria de descer até o mundo subterrâneo para levar uma caixa de Vénus, para que Perséfone, a deusa da Morte, a enchesse com sua beleza. Então, uma voz misteriosa disse-lhe ao ouvido que ela seria procurada por várias pessoas que lhe pediriam ajuda, mas que deveria lhes negar todos os apelos. E, quando Perséfone lhe desse a caixa - cheia de beleza -, ela não deveria abri-la sob hipótese alguma. Psique obedeceu a todas as orientações e retornou ao mundo superior com a caixa, mas um último golpe de curiosidade a derrotou, fazendo-a olhar dentro da caixa. Ao fazer isso, Psique imediatamente perdeu a consciência.
Cupido então veio até ela, mas dessa vez para perdoá-la. Ele intercedeu junto a Júpiter, que consentiu seu casamento com Psique e que ela se tornasse uma deusa. Vénus reconciliou-se com ela e todos viveram felizes para sempre.
A principal alteração nessa minha versão pessoal do mito é fazer com que o palácio de Psique seja invisível aos olhos das pessoas normais e mortais - se é que “fazer” não seja a palavra errada para eu me referir a algo que se impôs a mim logo na primeira vez que li a história, como de fato aconteceu. Essa mudança de curso traz com ela uma razão ainda mais ambivalente e dá à minha heroína um perfil diferente, além de modificar toda a qualidade do conto. Senti-me bastante à vontade para seguir Apuleio, que creio ter sido quem transmitiu o conto a outras pessoas, mas não quem o escreveu. Nada foi mais forte que o meu objetivo de recapturar a qualidade peculiar de Metamorfoses - essa curiosa mistura de romance pitoresco, historieta de horror, tratado de magia e misticismo, pornografia e experimento estilístico. Apuleio foi, é claro, um gênio: mas em relação ao meu trabalho ele é tão somente uma “fonte”, e não uma “influência” ou um “modelo”.
A versão dele foi seguida muito de perto por William Morris no poema The Earthly Paradise [O paraíso terrestre] e por Robert Bridges em Eros and Psyche [Eros e Psique]. Nenhum dos poemas, na minha opinião, mostra o melhor de seus autores. Metamorfoses foi integralmente traduzido para a língua inglesa pela última vez por Robert Graves (Penguin Books, 1950).
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